sexta-feira, 30 de outubro de 2009

basta quase nada


num fluxo contínuo eu quero conseguir dizer
isso tudo
isso mesmo
isso nada
isso tudo que por ser tudo não faz
sentido junto
sentido justo
sentido mata
eu não entendo as palavras
eu não entendo nada
eu não entendo a conduta
eu não entendo as coordenadas


porque foi você quem telefonou de madrugada
palavras soltas
palavras claras
pra dizer um pouco de muito
e de um pouco de falta
numa saudade única
numa saudade errada
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e nessa vontade mútua
do improvável
existe uma distância
quem sabe uma cilada
e é calando que talvez
possamos ser juntos
o impensável.


sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Uma canção


Penso em te dar os cheiros dos insetos,
o perfume de cadáveres mortos,
milhões de braços amputados pela guerra,
o sangue de bebês abortados.

Carros incendiados,
casas depredadas,
milhões de escândalos,
crimes contra a humanidade,
os viciados.

Penso em te dar os que morre de fome,
a sede dos que matam em nome de Deus,
o câncer,
a metástase,
a dor das mães mutiladas de saudade.

Os desaparecidos,
os vencidos pelo medo,
o colorido de ferro e sangue dos acidentados,
os que seguem sem querer.

Mas quero te dar amor.
Mas quero te dar amor.
Te dar amor.

A vida brilha mais forte.
Nossa alma nos protege.
É demais nossa vontade.
Vem e faz.
Juntos, fortes.
Vem e mais e mais e mais amor.
Vem e faz a vida valer.

A vida vai além do que trás.
Faz a vida além do que vale mais.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

laringe


minha garganta dói. minha garganta dói. minha garganta dói. faz tempo que não sentia minha garganta doer assim. engulo levemente, a saliva atravessa o corredor escuro da extensão do pescoço em passos lentíssimos, slow motion, muito cuidado pra não chatear a pobre da campainha, mas dói. dói. dói. okay. já entendi que o dia todo vai se alimentar de narrativas em silêncio. e que enfrentar um dia assim é muito difícil pra mim. porque eu sinto que um dia assim como uma vida assim sem palavras ou sons é muito triste. tudo parece remeter à uma atmosfera noir em que eu não me encontro. sinto-me pequena, minúscula, cisco. sem voz.
minha garganta dói. faz tempo que não sentia minha garganta doer assim. a última vez que minha garganta doeu desse jeito eu tinha 15 anos. com 15 anos eu tinha dores de garganta bastante freqüentes, quase sempre seguidas por crises de choro e melancolia. lembro do meu avô me perguntando porque chorava tanto quando tinha dor de garganta. eu tentava dizer, e chorava mais ainda.
com o tempo as dores de garganta foram sumindo. cresci um pouquinho e o ponto fraco do corpo passou a ser o nariz. ouvi dizer outro dia que todo ser humano tem um ponto fraco no corpo, uma parte que pede socorro desesperada quando há queda de resistência. resistência à quê? ... sei que cresci um pouquinho e meu ponto fraco deixou de ser a garganta e virou o nariz. dizem que a garganta é o lugar mais emotivo do corpo. nariz é pior, é respiração. e isso é bem mais complexo.
minha garganta dói e eu tento ensaiar músicas em silêncio. imaginar melodias sendo compostas pelo som que atravessa minha boca. tento exercitar o olhar, a atenção visual pras coisas e estabelecer um diálogo verdadeiro com a minha cachorra, que não sai de perto de mim nem por um instante. ela consegue latir.
minha garganta dói. minha garganta dói. minha garganta dói. dizem que a garganta dói sinalizando alguma coisa que não vai muito bem com o coração. mas eu sinto ele batendo direitinho ali, tique-taque, tique-taque, tique-taque. consigo colocar a mão do lado esquerdo e ouvir até o timbre que ele faz. pra ouvir o timbre colocando a mão do lado esquerdo do corpo é preciso que se tenha muita coragem. pode ser que se ouça um timbre que não se gosta, e isso é muito perigoso.
minha garganta dói e me toma as palavras. me deixa oca. e num grito mudo tento ouvir o que é que ela está querendo dizer.



quinta-feira, 8 de outubro de 2009

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Outro automóvel apontou o freio.

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E num silêncio cinza fez-se o gesto
Pára, menina. Pára.
Vê em torno, escuta, respira
O círculo da alma
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Rompe.
Sê inteira, alta
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Vive.
Retorna ao instante
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_

Canta
(...)

domingo, 4 de outubro de 2009

Voar



Domingo, subindo uma rua com uma mochila nas costas.

Espera o sinal fechar.

A rua está vazia mas ele espera o sinal fechar.

Não há carros mas mesmo assim ele espera porque sabe que se atravessar é o fim.

Atravessa a rua vazia.

É atingido por um automóvel em alta velocidade que tem toda a razão. O sinal estava verde pra ele.

Ele tinha esse direito.

Atigindo por um carro em alta velocidade e arremessado metros de distância.

A mochila voa alto.

O automóvel não teve culpa. O sinal estava fechado pra ele.

O automóvel não freiou porque não tinha culpa. O sinal estava aberto pra ele.

Domingo, subindo, a rua, a mochila subindo, subindo, em alta velocidade.

Era uma aposta.

Uma aposta não prever mas suspeitar que podia ser o fim.

Era uma aposta, uma roleta russa.

Voando sem asas.

As pernas partindo as calças.

O sinal verde para o pedestre.

O sinal vermelho-fratura.

A mochila leve, leve.

A carcaça.