quarta-feira, 21 de abril de 2010

Menos difícil


[Queria que fluísse. Que não tivesse que pensar no que pode e no que não pode. Que não precisasse calcular gestos. Que não optasse por omitir os desastres do mês de abril. Queria que fosse. Que não tivesse que fingir espontaneidade. Que falasse coisas bonitas e coisas toscas. Que conseguisse dividir o travesseiro. Que cantasse em uníssono as canções de Bregovic. Queria que caminhasse. Que não desejasse a pretensão de algo grandioso. Que não se enchesse de medo. Nem de angústia. Queria que fosse. Que soasse puro e simples. Que parecesse com os sonhos de criança. Que surgisse da sintonia de dois somente um querer.]

domingo, 4 de abril de 2010

lágrimas negras


De onde estou não me peça pra entender
Não adianta
Não adianta
Não adianta
Sobra um nó engasgado no peito
Um dilaceramento da garganta
Um silêncio duro
Uma distância
Tem aí um limite intranspassável
Alguma coisa se quebra e se transforma
Não são porquinhos que se restituem
Nem primaveras que voltam inteiras
É algo da ordem do irreversível
É mais duro
É mais sério
É mais cru
É pior
A lógica das sensações
A lógica do acontecimento
Não voltaremos ao que fomos
Não voltaremos
Não seremos
Não somos.

sábado, 3 de abril de 2010

Não fumo cigarros.


Tinha medo de atravessar a linha proibida.
Aquela linha tênue que separa, no amor, o possível do improvável. Aquela linha que, uma vez atravessada, poderia colocar tudo a perder.
- Quanto posso demonstrar? Quanto posso querer?
Não queria assustar o outro com seus passos apressados outra vez. Sentia desejo como sempre sentia desejo - o desejo pra ela era algo que não poderia ser nada mais nada menos do que grandioso, independente do que fosse. Se desejava, já era intenso. E isso ela sabia que assustava - não ela, que desde nova assumiu ser capaz de correr riscos. Mas o outro. Os tantos outros que passaram por sua vida.
Foram muitos os corações que ela foi capaz de assustar na demonstração do seu desejo.
Não conseguiu nunca fazer o papel da charmosa mulher que, enquanto fuma seu cigarro, lança olhares tortos aos homens durante uma noite esfumaçada. Sempre fora a mulher que tropeçava. A mulher que caía. Que falava alto e ria revelando os dentes. Que derrubava cerveja na blusa branca do flerte no primeiro encontro.
Sem conseguir ser estrela da nouvelle vague, tentava fingir que queria menos que queria - enquanto tentava verificar em si, sempre, se queria tanto quanto gostaria de querer. Tinha uma predileção por grandes encontros, dramas, romances em torpor. Fantasiava com estórias arrebatadoras até mesmo antes delas acontecerem.
De qualquer maneira, o momento era de cuidado. Não queria meter os pés pelas mãos outra vez. Caminhar na corda bamba, ligar menos, balançar os cabelos querendo dizer indiferença. Mesmo sendo aquela que derruba cerveja, deveria fingir, pelo menos por alguns instantes, ser a lady charmosa no canto da noite noir.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

A palavra escrita


Desapareceu como se nunca tivesse existido
sem deixar memória nem vestigios só a sensação
de que esteve mas não estava.
Abandonou a sala desarrumada depois da festa
e deixou um bilhete para o dono da casa:
Espero que compreenda.
E foi incompreensível a precisão da escrita,
a temperatura da linguagem.
O dono da casa esqueceu as palavras e o sentido delas
e ficou olhando pras próprias mãos que doiam e esperou
até a última folha da pitangueira e cantou aquela valsa
que fala das estações e viu aquele filme e viu outro daqueles
filmes e foi embora e foi sorrindo, e chorava e escrevia
aquelas palavras e todas aquelas palavras dentro das palavras
e nos espaços em branco entre as palavras cheios de fios invisíveis
e mato e partículas de saudade e pó.
E não se lembrou mais que alguém ou alguma coisa etérea e transparente
Desapareceu como se nunca tivesse existido
e dormiu sem querer compreender nada.